domingo, 25 de setembro de 2011

O Último Post

Deveria ter aproveitado mais.

Isso deve passar pela cabeça de todos nesse momento. 

Deveria ter visto mais pores-do-sol e mais luas cheias. 

Ter dançado quando senti vontade sem me preocupar com o que as pessoas iriam pensar, deixando minha timidez de lado.

Poderia ter amado mais. Deveria ter deixado que outros me amassem. 

Deveria ter chorado mais. As lágrimas que eu conti, o sentimento que eu não demonstrei apenas feriram mais o meu coração.

Provavelmente não deveria ter dado ouvidos para a maledicência. Teria conservado muitos amigos.

Não deveria ter falado tudo o que pensava. Algumas coisas poderia ter guardado, não teria machucado outras pessoas. Teria poupado sentimentos alheios. Teria poupado os meus sentimentos.

Entendo, enquanto conto as batidas cada vez mais espaçadas do meu coração, que meus valores eram nobres, mas não precisavam ser obrigatoriamente o de todos, e em que escala eu os pesei para garantir que eles eram tão “nobres” assim?

Poderia ter acreditado mais em Deus. Não gritando aos Céus, não participando de reuniões com outros crédulos, não dividindo palavras do seu livro apócrifo. Apenas crendo que existe um Ser que é supremo. Sua obra esta diante dos nossos olhos e nos envolve. Buscamos Deus entre as nuvens e Ele esta às vezes sentado à nossa frente, conversando conosco, apenas não O vemos e não acreditamos ser Ele. 

Será que Ele vai me acompanhar?

Deveria ter odiado menos. Ódio foi o copo de veneno que quis que meus inimigos tomassem, mas quem se embebedou dele foi apenas eu.

Talvez, devesse ter aproveitado mais tempo lendo, estudando, aprendendo uma outra língua. Conhecer pessoas de outras culturas teria sido uma maneira de ver o mundo por outros olhos.

Quem sabe, poderia ter visto mais filmes e principalmente mais comédias. Teria rido mais e meus dias teriam sido mais divertidos. 

As tristezas teriam menos espaços para preencher.

Não sei quanto tempo mais me resta, mas gostaria que houvesse tempo para ter conhecido mais lugares, ter viajado mais, visto as coisas que eu apenas vi em livros e na tv. 

Ter caminhado pelos bosques, nadado nos rios, subido nas montanhas.

Poderia ter enfrentado mais desafios. Não ter fraquejado para sair da minha zona de conforto. Ser mais corajoso.

Enfim... 

No fim, terei que reunir toda a minha pouca coragem, porque a jornada à minha frente, inevitável, que agora não poderá ser agendada para outro dia, não terá uma desculpa, não irá acontecer na “próxima segunda-feira”.

Me despeço, desejando tanto. 

Será que todos se despedem assim?

É um mundo maravilhoso, deveríamos aproveitá-lo mais.

Aceitar mais, rejeitar menos.

E... Aceito que chegou a hora de aceitar que devo ir, não sinto as batidas do coração, não sinto a respiração. Esses já são pensamentos de quem abandonou com tristeza a vida. Se houvesse uma nova oportunidade, faria diferente...

Adeus.

sábado, 3 de setembro de 2011

Jessica

O sonho se foi, dando lugar a realidade do dia.

Não seria um dia diferente dos outros.

O sol já ia pelo meio de sua jornada, e o som do tráfico, mesmo abafado pelas janelas fechadas era audível. Grossas cortinas de veludo vermelho impediam a entrada da luz. Na penumbra, abri meus olhos, e o relógio ao lado da minha cama, contava o tempo em um tic-tac enfadonho. Permiti-me mais cinco minutos. Não estava acordado, e nem dormindo. Só queria ficar ali mais alguns instantes, para que o sono se fosse, e eu levantasse para a vida novamente.

O som do relógio foi ficando mais alto. Não podia ficar ali eternamente. Muitas coisas me chamavam para fora da cama. Apesar de ser sábado, e de ainda ter o gosto da ressaca da noite passada na boca, precisava sair.

Levantei-me, e sentado à beira da cama, esfreguei meu rosto. A barba estava cerrada. Os cabelos em desalinho. Olhei a minha volta. Minha calça jeans estava jogada no chão acarpetado, ao lado do resto das minhas roupas. Em passos lentos, caminhei até a janela. Abri as cortinas de um golpe, sendo cegado pela claridade do exterior. Lá fora, pessoas, carros. O mundo.

Olhei novamente para o meu quarto. A cama de casal, os travesseiros. O maldito relógio que não parava de fazer barulho. O pequeno porta retrato colocado no criado mudo mostrava o sorriso da mulher que tanto amo. Seus olhos azuis, seus cabelos loiros lisos, que escondiam parte do rosto. Uma ponta de tristeza me vem à mente ao olhar aquele sorriso.

Debaixo da água fria do chuveiro, procuro energias. Ao me vestir, novamente olhei para o retrato. Sai, caminhando a esmo pela calçada. Precisava sentir o sol nas minhas costas, o vento no meu rosto. O mundo me recebia em um dia glorioso, mas o que queria eram nuvens cinzentas, raios e trovões. Era o que tinha na cabeça. Um tornado, que me envolvia, colocando o corpo andando na rua, ao lado de pessoas reais, mas que deixava a cabeça em outro lugar, em outro tempo.

Sentado, almoçando a comida que não tinha mais gosto, desejava que esse tempo e esse outro lugar voltassem.

- Você esta bem? Disse-me uma voz suave ao meu lado.
- Estou apenas sentindo sua falta, respondi sem erguer os olhos do prato.
- Mas eu sempre estou com você, por que sente minha falta?
- Porque um dia você se foi, e esqueceu que eu fiquei aqui sofrendo.
- Eu não tive escolha, disse a voz com um tom de tristeza.
- Nós não tivemos escolha, respondi, as coisas não foram da maneira que imaginamos.
- Eu precisei deixar você, mas isso não impede que você esteja comigo a hora que quiser.
- Eu sei que você nunca vai me deixar, eu disse, pagando a conta e deixando a lanchonete.

Não tinha nada específico para fazer. Podia caminhar por todo o dia, podia voltar para casa. Poderia até ficar ali de pé, sem se mover. O universo podia estar mostrando toda a sua imponência, mas eu queria que o mundo e tudo nele virassem pó.

A boca estava seca.

A calçada branca me dava duas direções. Retroceder nos meus passos, ou seguir adiante. Entre o nada óbvio que deixei e o inexplorado, decidi pelo segundo. Andei por algum tempo, sem ver, nem sentir nada. Apenas cansaço. E sede. Muita sede.

Um copo de whisky, sem gelo me encontrou. O garçom quis levar a garrafa embora. Não deixei. Ela seria minha companheira pelo resto do dia. Não falava nada, mas me escutava. Eu precisava de alguém para me escutar. Quem melhor do que uma garrafa?

-Não faça isso com você, disse a voz.
-Eu não tenho alternativa, disse tomando mais um gole.

A mão barrou o meu movimento trazer o copo até a boca. Eu não queria olhá-la. Podia sentir sua presença, mas não queria sofrer ao vê-la novamente ao meu lado. A amava tanto, mas de uma certa forma gostaria que ela desaparecesse, que não estivesse mais nos meus pensamentos.

-Eu não estou no fundo desse copo, disse.
-Esse é o problema, você não esta no fundo do copo, não esta aqui, não esta em lugar nenhum, aonde você esta?

Silêncio. Não havia resposta para a minha pergunta. Muitas perguntas ficavam sem respostas. Essa era uma delas. Não questionei novamente. Nós dois conhecíamos o código. O silêncio determinava que a resposta era já conhecida, ou então não existia. A bebida poderia não ser a resposta também, mas era um relaxante.

-Você se lembra quando nos encontramos? Perguntou.

Se eu me lembrava? Claro que me lembrava. Esse era um dos lugares que eu gostaria de estar agora. Lembrava com todos os detalhes...

O Encontro

A palestra ia pela metade. O assunto era fascinante. O orador conseguia prender a atenção das pessoas que enchiam o auditório. Eu estava como convidado, e sentado na mesa instalada no palco, ficava de frente para a platéia e podia sentir a reação das pessoas. Em uma linguagem simples, muitas vezes leiga, era explicado o que acontecia com nossas almas depois da morte. Apesar de minha área de atuação totalmente diferente, eu sempre fui interessado no assunto. Não podia aceitar o fato do puro e simples fim. Seja de uma forma religiosa ou cientifica eu acredito que não estamos aqui somente em forma física, mas de uma forma muita mais poderosa, que é a alma, o espírito. Estava extasiado com tudo que escutava. Algumas coisas eram novas para mim, outras estavam relacionadas com o que pensava.

Durante a pausa, fui abordado por uma jovem. Ela carregava um bloco de anotações, e com ar interrogador me perguntou:

- O senhor poderia me ajudar? Fiquei em dúvida sobre alguns pontos da palestra.
- Desculpe, pensei que o senhor fazia parte do grupo de palestrantes.
- Não, sou somente um convidado, mas muito interessado. Por favor, não me chame de senhor, não sou muito mais velho que você. Meu nome é Bruno, disse estendendo minha mão.
- Muito prazer Bruno, sou Jessica, estudante de psicologia. A principio não estava muito interessada, mas agora estou cheia de curiosidade sobre alguns pontos. Acho que vou comprar o livro do Sr. Roberto para entender melhor o que escutei.
- Tenho certeza que ele ficará muito contente com isto.

Ela sorriu. Não vou deixar o leitor curioso. Jessica era uma loira linda. 1.70 de altura, olhos azuis brilhantes, cabelos nem longos nem curtos. Quando sorria, surgiam duas covinhas no seu rosto. Tinha os seios médios. Apesar de ser linda, se escondia em roupas muito discretas, que lhe emprestavam mais idade do que os seus 25 anos. Tinha lábios vermelhos e carnudos. Seu sorriso iluminou o ambiente.

- Acredito que ele ficará sim, disse, você já leu o livro?
- Não, mas vou ler. Vamos conversar com ele, para você fazer suas perguntas.

Acompanhou-me, e durante quinze minutos teve toda a atenção de Roberto. Não só pelas perguntas que fez, mas também pelo interesse que sua presença provocou nele. Fomos os três até o auditório, e ela sentou-se na primeira fila. Tomei meu lugar no palco, e Roberto continuou sua explanação. Por algum tempo me entretive com suas teorias. Minha atenção foi quebrada por um ‘psiu’, que vinha da platéia. Na escuridão, pude perceber que Jessica me fazia sinais, para que me sentasse a seu lado. Levantei-me de maneira discreta, mas ao tentar descer do palco, enrosquei o meu pé no fio do microfone. Esparramei-me quase aos pés dela, com muito barulho, que interrompeu Roberto e tirou algumas risadas das pessoas.

- Às vezes os espíritos nos pregam peças, disse Roberto rindo, para depois voltar ao tema da palestra.

Sentei ao seu lado, muito vermelho pelo que acontecera. Meu joelho doía, assim como meu braço. Jessica olhou-me preocupada.

- Você esta bem?
- Tudo bem, apenas com o ego um pouco machucado, disse sorrindo, O que você queria?
- Desculpe-me, me sinto culpada. Eu podia ter esperado o fim da palestra. Mas fiquei curiosa em saber a sua opinião. Não imaginei que você ia tropeçar e cair.
- Você não tem que se desculpar pela minha falta de jeito. Eu sou meio atrapalhado mesmo, e só consigo saber qual é a minha mão direita quando vou escrever. É a outra mão, já que eu sou canhoto.

Ela soltou uma gargalhada. Roberto do alto do palco lançou-nos um olhar de desaprovação. Algumas pessoas pediram silêncio. Eu me virei para ela que também estava enrubescida e falei:

- Agora você esta desculpada.
- Nossa! O pessoal esta gostando mesmo da palestra. Acho melhor nós nos calarmos.
- Ou podemos sair de fininho, eu disse, e continuar conversando no corredor, onde não atrapalharíamos ninguém.
- Você pode sair? Perguntou.
- Posso, eu só sou convidado, e pela cara que o Roberto fez, não serei mais, não nesta encarnação pelo menos.
- Então vamos, disse se levantando com seu bloco de notas.

Durante aquele tempo que falamos do lado de fora do auditório, nos conhecemos melhor. Aqueles pequenos incidentes nos fizeram ficar a vontade. Conversamos sobre os assuntos da palestra ainda de pé. Como estávamos interessados no que o outro falava, começamos a caminhar pelo corredor, até que encontramos uma pequena saleta com paredes de vidro, com mesa e duas cadeiras. Sentamos ali e discorremos sobre diversos assuntos, chegando até nossa vida pessoal. Jessica era solteira, morava sozinha em um apartamento próximo a universidade. Estava no último ano de psicologia, e procurava argumentos para sua tese. O tempo passava e de onde estávamos, vimos as pessoas deixando o auditório. Era quase meio-dia. Não quis que nosso encontro terminasse ali. Convidei-a para almoçar na cantina do campus, e ela aceitou.

Nosso almoço foi divertido. Eu contava coisas que haviam acontecido comigo e que tinham me deixado envergonhado, e ela ria muito. O tempo passava depressa, e logo estávamos praticamente sozinhos no amplo salão do refeitório. Apenas as serventes faziam a limpeza.

- Jessica, disse, não gostaria que a nossa conversa acabasse agora, poderia encontrá-la novamente?

Ela pensou um pouco. Eu era professor da universidade. Apesar dos meus 35 anos, eu aparentava um pouco mais, fruto de noites e noites de estudos.

- O que você tem em mente, perguntou um tanto desconfiada.
- Na verdade eu não sei, mas gostaria de continuar nossa conversa e escutar sua risada, disse sorrindo.
- Vamos fazer o seguinte, você me dá o seu telefone, e eu ligo para você.
- Você não vai ligar, eu disse sem sorrir.
- Por que não?
- Você pediu o meu telefone, mas não falou que vai dar o seu.
- Eu realmente não vou dar o meu telefone, mas por outro motivo, eu não tenho telefone em casa, disse sorrindo. Mas eu tenho uma dúvida, se eu ligar para você não vou encontrar uma esposa ciumenta do outro lado da linha?
- Não, ninguém me suportou tempo suficiente para se casar comigo.
- Você é tão ruim assim? Perguntou com malícia.
- Vamos dizer que eu não sou ruim, mas um pouquinho excêntrico.
- Em que sentido?
- Gosto de usar meias de cores diferentes, veja, disse mostrando meus pés.
- Por que você faz isso? Perguntou intrigada com aquilo.
- Porque tenho a mania de me trocar no escuro.

Ela soltou uma gargalhada.

- Olhe, se este for o seu único defeito, eu vou ligar para você sim, e mais rápido do que você pensa.
- Quando? Se você disser que vai ser logo, vou para casa agora esperar a ligação.
- Vamos economizar telefone, Bruno o que você vai fazer amanhã à noite?

Fui pego de surpresa. Nunca havia sido convidado por uma mulher para sair. Sempre tive a iniciativa. Mas aquilo era uma novidade boa.

- Se você quiser, estarei a sua disposição, disse.
- Então temos um encontro, que horas eu apanho você?
- Você vai me apanhar? Você não acha que eu deveria pegar você? Afinal você já fez uma parte que deveria ser minha, me convidando para sair.
- Não, eu adoro dirigir. Onde e a que hora eu apanho você? Perguntou decidida.

Escrevi em um guardanapo o meu endereço, e combinamos para as nove da noite. Ela se despediu, com um beijo no meu rosto. Acenou com a mão para as serventes e se foi pela porta de vidro.

Na noite seguinte, estava de pé, na calçada aguardando por Jessica. Aquela situação era nova para mim. Sentia-me meio idiota ali. Pensei quantas mulheres não fizeram isso na vida. Ficar esperando pelo par em frente de casa. E eu estava incomodado, só porque estava fazendo isso uma vez. Pneus cantando na esquina chamaram a minha atenção. Era Jessica. Ela estacionou à minha frente, fazendo marcas no asfalto. Abriu o vidro do lado do passageiro e disse:

- Vamos?
- Vamos, disse me sentando ao seu lado no carro, mas para onde?
- Esse vai ser o meu segredo, disse acelerando o carro e entrando perigosamente no transito da avenida.
- Você não deveria usar cinto de segurança? Ainda mais dirigindo dessa maneira?
- Eu até penso que sim, disse, mas me apertam muito e eu sou boa motorista. Sei me cuidar, falou me olhando enquanto tirava uma casquinha do carro à sua frente.
- Acredito que você seja uma excelente motorista, mas você não se importa se eu colocar o meu, não é? Só por precaução? Afinal tem muito motorista louco nesse transito.

Ela riu, e deixando o trafego pesado da avenida principal, foi em direção a parte alta da cidade. Parou o carro em um lugar conhecido como ‘A Vista’. A paisagem era belíssima, pois a cidade ficava aos nossos pés. Ali existia um restaurante dançante. Jessica vestia um vestido curto, preto, e saltos altos. Pensei comigo, como ela poderia se equilibrar naquelas pontinhas que pareciam tão frágeis. Pois ela não só se equilibrava bem, como andava divinamente, em um suave balançar. Sua maquiagem discreta, somente aumentava sua beleza. Não usava sutiã. Seus seios firmes formavam um vale, que o decote do vestido realçava. Jantamos ali e apesar da minha falta de jeito, também dançamos, tomando o máximo cuidado para não pisar aqueles pés tão delicados. Estava calor, e fomos para o mirante do restaurante. As luzes piscavam na cidade. Ao colocar a mão no parapeito, sem querer, coloquei-a sobre a dela.

- Desculpe Jessica, sou meio atrapalhado, disse.
- Por que você tirou sua mão tão rapidamente? Disse me olhando.
- Pensei que talvez você não a quisesse lá, não pelo menos no nosso primeiro encontro.
- Não pense tanto, aproveite o momento. A vida é feita de pequenos prazeres, falou por fim, segurando minha mão.

Pequenos prazeres e grandes tristezas, pensei enchendo o copo novamente. Pelo menos era sábado, e não precisava trabalhar amanhã. Não tinha que encarar aqueles jovens no dia seguinte. Todas aquelas caras esperançosas, pensando no futuro. O futuro era um lugar onde ninguém quer estar. É um lugar triste, em que você fica sozinho. O presente, ponte entre futuro e o passado, era amargo. O passado só me faz sofrer. Onde estão os meus antigos objetivos? Onde vou estar daqui a alguns anos? Se continuar bebendo desta maneira, com certeza em uma clinica de reabilitação de alcoólatras, pensei rindo. Pelo menos terei companhia, seja ela qual for. Olhei para o céu. Nenhuma nuvem! Quando eu conseguiria os trovões e raios que queria? Eles seriam muito mais bem vindos do que aquele sol brilhante. Por que toda essa gente parece estar feliz? Eles não sabem o que espera por eles? Não, não sabem. Pensam que tudo será igual para sempre, inclusive esse maldito dia ensolarado. Se soubessem o futuro, estariam ali, dividindo a garrafa comigo.

- Você tem os olhos tristes.
- É porque eu vi o meu futuro, disse.
- Que futuro? Desde quando você é adivinho?
- O futuro de não ter você ao meu lado. De viver sozinho. De amar você ao extremo, mas não conseguir tê-la novamente. Aprendi a ver esse futuro desde que você me deixou.
- Por que você fala dessa maneira, você me entristece tanto. Eu amo você. Você parece que esqueceu disso.
- Não eu não esqueci, assim como eu não esqueci o quanto eu amo você. Por lembrar disso a todo o momento é que sou triste. É por lembrar de todo o amor que carrego por você no meu coração que essa amargura não me larga. Por que você me deixou? Nós éramos tão felizes. Aonde você esta agora, você é mais feliz?
- Não, não sou. Vivo o mesmo que você vive. Sinto o mesmo que você sente. Sinto a falta do seu carinho, do seu amor. Sou culpada por nós dois. Você quer que eu vá embora?
- Claro que não, quero que você fique, mas queria que fosse de outra forma.
- Eu sei, eu também gostaria, mas o destino não quis assim, e nós somos fracos perante ele. Se eu tivesse o poder de voltar atrás, de trazer a nossa felicidade de volta...
- Mas não tem, nem eu não tenho. Ninguém tem.

O copo estava vazio novamente. Onde estava o maldito garçom para trocar aquela garrafa.

- Não posso ficar vendo você se matar aos poucos, disse a voz.
- Gostaria que eu me matasse de uma vez? Perguntei com raiva.
- Por que me trata assim, eu quero o seu bem.

Eu sei. Eu também quero muito você, pensei. Não pude falar. O efeito do álcool começava a embaralhar a minha língua. O tempo não passava. Por que a noite não chegava logo, para que eu pudesse me esconder sob seu manto, e chorar a sua falta?
Por que eu não esquecia tudo o que eu havia vivido, e começava a viver uma vida nova? Onde eu poderia achar o remédio para as minhas feridas?

- O remédio que você procura, não esta neste copo, nem nas lágrimas que derruba por mim, ela disse.
- E onde ele esta?

Silêncio.

Novamente o silêncio nos envolveu. Era mais uma das perguntas sem respostas. Tínhamos mudado muito, em outro tempo, conversávamos sobre tudo, não tínhamos hora e lugar para conversar. Éramos felizes na nossa simplicidade. Não soubemos aproveitar essa felicidade.

- Não sei onde você pode encontrar a cura que tanto procura. Eu mesma procurei, mas não encontrei. A nossa felicidade ficou em algum lugar há algum tempo atrás, disse com voz chorosa.
- Ela ficou onde deveria estar. Junto de nós, em algum lugar diferente deste, onde sabíamos rir, nos amávamos.

Felicidade

Acordei com batidas na porta. Quem poderia ser àquela hora da madrugada? Olhei para o relógio e percebi que não era mais madrugada, mas sim duas da tarde. De qualquer maneira quem seria? Fui atender colocando meu roupão e amaldiçoando as pessoas que vão à casa de outras sem avisar.

- Você esta doente? Perguntou Jessica, usando jeans, camiseta, óculos escuros e boné.
- Não, me desculpe, não esperava ninguém, disse visivelmente embaraçado.
- Você sabe que hora é? Rindo do meu mau jeito.
- Se o meu relógio estiver certo, é muito tarde para o almoço e muito cedo para o jantar. Com certeza já passou da hora de estar fora da cama. Vou tomar um banho e colocar uma roupa decente.
- Tente se apressar, vim rapta-lo.
- Raptar-me? Para onde?
- Confie em mim, disse se jogando na poltrona, você vai gostar.

Ela colocou os pés no braço da poltrona e pegou uma revista que estava a seu lado. Como eu continuava ali olhando para ela, tomei um pito.

- Vamos Bruno, o dia esta lindo, não fica ai me olhando como se nunca tivesse me visto, vai tomar um banho, coloca uma roupa esporte, eu vou ficar esperando você aqui. Você só tem essa revista de mulher pelada?
- Tudo bem, eu vou. Só tenho essa, você esta na casa de um cara sujeito sem muitas perspectivas. Mas faça como eu, leia só as reportagens.
- Sei, só as reportagens, disse ela rindo. Aposto que você pula as páginas com mulheres e só se preocupa com a moda masculina. Vai logo tomar o seu banho, que essa sua sala esta parecendo sala de visita de dentista, só tem revista velha.

Como ela estava à vontade! Ficar com vergonha por causa da bagunça seria bobagem. Era melhor fazer o que ela dizia. Tomara que ela me levasse em algum lugar que pudesse comer. Estava faminto.
Sai do banheiro vestindo somente toalha, e fui saudado com um assobio de Jessica. Envergonhado apenas dei um sorriso amarelo, indo na direção do meu quarto. O que vestir? A calça na cadeira não era apropriada. Ela estava precisando era de lavanderia. Vesti rapidamente um jeans, camisa de algodão, calcei tênis e me encontrei com Jessica na sala. Ela estava de pé, com mais de meio corpo para o lado de fora da janela. Parecia estar falando com alguém. Da janela ao lado vi que ela falava animadamente com o vendedor de cachorro quente que fazia ponto na frente da minha casa. Aquilo me pareceu interessante. Eu morava ali há bastante tempo, e o sujeito tinha a carrocinha dele todos os dias ali por três anos, e nunca havíamos conversado. Ela estava ali há vinte minutos e já sabia seu nome, quantos filhos tinha e até quantos cachorros quentes vendia por dia. Ela tinha realmente uma personalidade marcante e cativante.

Ela logo notou a minha presença. Olhou-me de alto a baixo, como que me aprovando. Pegou a minha mão e falou:

- Você esta perfeito, vamos logo, disse me puxando.

Já no carro, antes de sair novamente cantando pneus, perguntou:

- Estava escuro no seu quarto?
- Não, por que?
- Você esta com as meias de cores diferentes, disse rindo, dando uma fechada em um táxi que vinha pela avenida.

Eu olhei para os meus pés. Realmente, estava usando um pé azul e outro amarelo.

- Sabe o que é mais engraçado, perguntei para ela, segurando na proteção da porta, enquanto ela ziguezagueava entre os carros.
- Não, o que?
- Eu tenho outro par igualzinho lá em casa.

Tinha de parar de fazer ela rir enquanto dirigia. Toda vez que eu fazia isso ela ia mais rápido. Meus dedos apertavam tanto o puxador da porta, que acho que já o estavam moldando. Por que ela tinha tanta pressa?

- Qual é o segredo de hoje?
- Se eu contar para você, deixa de ser segredo. Senta e aproveita o passeio.

Eu aproveitaria mais se estivesse em uma montanha russa. Ela só olhava para frente. Era eu que via a cara dos outros motoristas e os sinais que eles faziam. Ela fazia das ruas sua pista particular de corridas. Aonde esta polícia quando a gente precisa dela? Eu precisava! Na próxima vez ia usar um capacete, e se possível um macacão antichamas. Ficaria bem mais seguro.

Após 15 minutos de piruetas pela rua, ela parou o carro. Se aquilo era um teste, eu havia passado com honras. Estava tão tenso com o transito que não percebi de imediato onde estávamos. Era um cemitério.

- Se eu soubesse que vínhamos a um funeral, teria colocado uma roupa mais apropriada, disse olhando para ela, que parecia estar se divertindo muito.
- Não bobo não é um funeral. Você é canhoto, mas só olha para o lado direito da rua. Olhe para o outro lado.

Entendi o que ela falava. Era um parque de diversões. Ela segurou minha mão e me puxou pela avenida, sem olhar para os lados. Ainda pude escutar o palavrão que o motorista de ônibus disse em alto e bom tom para nós enquanto passávamos a catraca de entrada. Jessica se transformara em uma menina. Comprou um gigantesco algodão doce, que me melava toda vez que ela se virava para falar comigo. Ela mesma ficou com o rosto todo cheio de fiapos. Não ligou para nada disso. Fez-me tentar ganhar um urso para ela no tiro ao alvo. Consegui um sapo de plástico. Ela queria o urso. Tentamos acertar nos alvos, mas era impossível acertá-los em números suficientes para ganhá-lo. Ela ficou entristecida. Enquanto íamos a outra barraca, tive uma idéia.

- Espere-me aqui, vou tentar uma última vez. Não saia daqui.
- Não adianta, a arma deve ter o cano torto, disse ela chateada.
- Então eu vou endireitar, mas você vai ter o seu urso.
- Eu vou com você, quero ver o que vai fazer.
- Não, você fica aqui, disse detendo-a, olha, tem uma barraca de cocada ali, compra uma de coco queimado para mim enquanto eu vou lá caçar o seu urso.

Voltei a barraca e chamei o responsável para conversar.

- Quanto quer pelo urso?
- Não esta a venda senhor, mas pode tentar atirando.
- Meu amigo, não complica, quanto quer pelo urso.
- Quanto você tem? Perguntou o sujeito.
- Quanto eu tenho? É esse o preço?

O sujeito riu de mim. Sorte dele aquelas armas serem de ar comprimido. De qualquer forma, consegui o urso. Quando Jessica me viu chegando, agarrado àquele imenso urso, abraçou nos dois.

- Adoro você! Você conseguiu!
- É, disse sem jeito, eu consegui.
- Agora vamos à montanha russa! Nós três.

Não adiantou dizer que eu enjoava, que eu não gostava, que eu não queria. Fui arrastado, junto com o pobre urso para a montanha russa, onde, por incrível que pareça, me senti melhor do que no carro da Jessica. Não posso dizer nada pelo urso, mas Jessica estava eletrizada. Era movida a adrenalina. Andou pelo parque inteiro, somente escolhendo os brinquedos perigosos. Quis levá-la para o carrossel, mas em vez disso me vi dando cambalhotas e gritando, enquanto meus cigarros caiam do meu bolso para se esborrachar no chão, que parecia cada vez mais longe dos meus pés. Eu estava ficando velho para aquele tipo de coisa. Mas enquanto gritava de terror, eu segurava a mão de Jessica, que me transmitia segurança. Ela ria sempre, e de uma forma contagiante.

Já era noite quando deixamos o lugar. Eu estava tonto, e ainda tinha que preparar o estômago para a volta para casa. Sentei a seu lado, esperando o pior. Jessica me olhou como esperando por alguma coisa. Olhei em volta e não descobri o que seria, tive que perguntar:

- O que foi Jessica, o que você esta olhando?
- Você esqueceu de colocar o cinto de segurança no meu urso, disse.
- Colocar o cinto no urso?! Eu estou andando neste carro com você há dias, e nenhuma vez você se preocupou com a minha segurança. Andou até em duas rodas! E agora se preocupa com o que vai acontecer com o seu urso? Isso deve ser uma brincadeira sua.
- Você esta muito nervoso Bruno, é um pedido simples. Eu vou ficar preocupada se o meu urso se machucar.
- Ok, Ok, se você acha importante, vou fazer, respondi meio emburrado. Aquilo parecia idiotice. Um estúpido urso preso ao banco com cinto de segurança. Quando me virei para trás, para prendê-lo, Jessica me interrompeu:
- O que esta fazendo?
- Estou prendendo o seu amado urso no banco, para ele não ficar dodói, disse-lhe em um tom de ironia.
- Mas você é atrapalhado mesmo. Eu não estou falando desse bicho de pelúcia. Estou falando de você! É você que deve usar o cinto. Você é o meu urso. É com você que eu me preocupo. Você é que fez o meu dia tão maravilhoso.

Eu estava ainda ajoelhado no banco, mas não me contive e beijei-a, puxando-a para mim. Seu cabelo se misturou com meus dedos, e seu perfume se misturou com meus lábios. Abracei-a forte. O calor do seu corpo aqueceu o meu. Por um momento pensei nas pessoas que passavam ao nosso lado, tentei alertá-la. Mas ela me puxou para junto de si. A sensação do amor, sendo conduzido pelos nossos corpos foi algo indescritível. Depois de alguns minutos, me separei de sua boca. Meus olhos brilhavam. Os olhos de Jessica pareciam duas piscinas.

- Penso que esse urso ai atrás não tem idade suficiente para estas cenas, eu disse.
- Você tem razão, falou, tirando o boné e cobrindo o rosto do boneco. Ele não tem.

E se abraçou em mim novamente, para mais um beijo.

Agora a noite já vinha. Ainda bem, pensei. Esse maldito brilho estava me cegando o dia inteiro. Que viesse a escuridão para fazer par com a minha negritude interior. Daqui a pouco, tenho certeza que vão aparecer estrelas no céu. Até quem sabe aquela lua curiosa. Por que tudo tem que brilhar? Por que não podiam ser simplesmente foscos e opacos? Essa mania de tudo ter alguma coisa alegre é um porre! Por falar nisso, onde esta o meu copo?

- Pare de beber Bruno, isto não esta ajudando você.
- E devo fazer o que? Dançar? Cantar?
- Você deve seguir adiante. Viver!
- Sem você?
- Se for preciso, sem mim, disse a voz, desta vez em um tom muito triste.
- E como pensa que isso seria possível? Não existe nenhum botão de liga e desliga no meu coração, ele não vai parar de amar você porque eu quero. Ou você deixou de me amar assim tão facilmente?
- Não, eu nunca vou poder deixar de amar você, e você sabe disso. Sinto no tom da sua voz que você me culpa pelo que me aconteceu.
- Eu não a culpo, disse sem muita certeza.
- Você me culpa por estar sozinho, por eu ter deixado você. Se eu pudesse voltar, e refazer o que fiz de errado, eu o faria. Se eu pudesse devolver a sua alegria, eu o faria. Mas não posso.
- Eu já disse que você não pode, nem eu posso. Ninguém pode. Isso esta além dos nossos desejos. Você não fez nada errado. Não foi sua culpa.
- E o que você pretende fazer? Beber até morrer? Será que sua vida vale menos que esse copo na sua mão?
- Minha vida deixou de valer alguma coisa o dia em que você se foi. De agora em diante, o que me resta, é esse copo, a tristeza, a solidão.
- E o amor?
- Eu já amei, e meu amor será sempre da mesma pessoa. Será sempre seu.
- Mesmo que você não possa nunca mais me ter em seus braços, não possa me beijar, nem possa mais fazer amor comigo? Mesmo que você não possa mais segurar a minha mão nas nossas caminhadas? Você me amará mesmo que nunca mais escute a minha voz?
- Quem provou do seu amor, não o trocaria por nada. Você foi a mulher mais doce, a mais meiga, a mais terna, linda e sensual que eu conheci. Por você eu daria minha vida. Por mais um beijo seu... Eu não posso viver sem você, entenda isso.
- Amor, disse a voz novamente em tom calmo.
- O que? Disse tentando conter as lágrimas.
- Eu amo você.

Amor

As horas não costumam passar quando queremos. As aulas da manhã eram as piores. Dos grandes janelões eu ficava olhando para fora, pensando em como seria bom que as férias chegassem logo. Respondia as perguntas dos alunos mecanicamente, e passei a aplicar provas e trabalhos em classe. Ficava com mais tempo para pensar em Jessica.

Quando finalmente a campainha tocava, eu já estava com minha pasta na porta da sala. Vencia os corredores quase em marcha atlética, para encontrá-la na porta do refeitório. Ainda assim minha vontade não era saciada. Não podia ficar distribuindo beijos em alunas, mesmo que não fossem minhas. Fazíamos isso todos os dias, somente para almoçarmos juntos. Teríamos que esperar por toda à tarde para podermos ficar realmente juntos. Apesar de Jessica protestar muito, ela me seguia no seu carro, em velocidade moderada, o que a deixava fula. Como eu morava mais perto do que ela, nós fizemos da minha casa nosso local de encontros favorito. É lógico que muita coisa mudou.

A revista masculina foi trocada por diversas publicações de interesse geral. As flores de plástico que ficavam em cima da mesa da sala, deram lugar a flores desidratadas. Tinham até perfume. Troquei a minha velha cama de solteiro, por uma de casal, que nunca parecia grande suficiente para Jessica. No banheiro existiam duas toalhas bordadas ‘ele’ e ‘ela’. O velho assoalho de tacos, foi forrado com carpete, para que ela pudesse andar descalça pela casa. A cadeira, que usava de cabide para roupas e para calçar os sapatos, foi trocada por um novo cabideiro em cerejeira. Jessica colocou cortinas no quarto, que deixavam os olhos curiosos longe de nós. Acostumei-me com colchas floridas e a encontrar roupas íntimas dela misturadas com as minhas na minha gaveta.

Não sentia mais tristeza ao voltar para casa. Sempre encontrava alguma coisa dela em algum lugar estranho. O que eu mais gostava eram as mensagens em batom no espelho do banheiro. “Eu amo você”, “Você esta olhando para o amor da minha vida”, “Estive aqui, mas não encontrei você”, “Não posso esperar até a noite”, e coisas assim. Ela tinha sempre um recado diferente, e os pintava com cores diferentes. Às vezes até as letras eram multicoloridas. Algumas noites em que passávamos separados, encontrava uma calcinha dela perfumada debaixo do meu travesseiro, e junto um bilhete “para você não esquecer de mim”. Isso era o que acontecia quando não estava lá. Quando estava, era muito melhor.

A casa ficava iluminada. Ela tirava as roupas e colocava alguma camisa minha e meias brancas. Fazia tudo desta maneira, talvez para me provocar. Sentava no meu colo, e falava sobre seu dia. Perguntava sobre o meu. Me deitava na cama, e sentada nas minhas costas, me massageava para me relaxar. Era péssima cozinheira, mas mesmo as suas omeletes queimadas eram deliciosas. Colecionava receitas que nunca fazia.

Às vezes eu acordava sem encontrá-la do meu lado. A achava na sala, de pernas cruzadas no sofá, óculos na ponta do nariz, lendo e fazendo anotações. Ficávamos até de madrugada conversando abraçados. Ela tinha um ponto de vista interessante sobre a vida. Não gostava de dormir, e só adormecia depois que o sono a vencia. Dizia que quando dormíamos estávamos de certa forma mortos. Precisava viver, viver muito para me amar. Repetiu isso muitas vezes. E como me amava. Jessica tinha o corpo perfeito. E sabia disso. Sabia se insinuar. Era uma mulher sexy. Apesar dos cabelos loiros, sua pele tinha cor de mel. Gostava de ir para a cama usando um baby doll preto. Acendia algumas velas aromáticas pelo cômodo. Se durante o dia era uma mulher de ação, durante a noite se revelava extremamente feminina e carinhosa. Eu não cansava de fazer amor com ela. Quando finalmente parávamos para descansar, a cobria de beijos. O sexo para ela funcionava como um estimulante. Lembrava de coisas da infância, ria, contava piadas, que me faziam rir. Algumas vezes fazia cara séria, e discorria sobre os problemas do mundo. Podia falar horas, até que conseguisse a minha concordância. Quando isso acontecia, descansava a cabeça no meu peito e dizia que me amava. Algumas vezes fazíamos sexo de forma violenta, como se fosse a última vez que iríamos estar juntos. Dormíamos suados, nos braços um do outro. Nos sentíamos completos juntos.

E estávamos.

Éramos a extensão um do outro.

Na minha vida tive muitas mulheres. Haviam passado sem deixar marca alguma em mim. Jessica era a reunião de todas em uma só. Era cativante. Era mulher em corpo de menina. Era inteligente. Tinha bom humor, e sabia rir, não só com os movimentos da face, mas transparecendo sua alegria por todo o seu corpo.

Estivemos morando em casas separadas por três meses, e Jessica só não ficava comigo quando tinha alguma prova pela manhã. Estudava a noite inteira, e dizia que isso iria me atrapalhar, já que diferente dela, eu adorava dormir.

Um dia, bati à sua porta. Recebeu-me de óculos, vestindo uma camisa minha que com certeza surrupiara, e um livro aberto na mão. Abriu o sorriso quando me viu.

- O que um homem tão ocupado, que dorme 14 horas por noite esta fazendo aqui a esta hora?
- Eu vim a mando da Agência de Transportes Bruno, respondi sorrindo, e estou aqui para levar sua mudança para um novo endereço.
- Novo endereço? Perguntou intrigada.
- Sim, tenho aqui ordens expressas de não deixar nada nesse apartamento, e inclusive levar a dona dele comigo.
- E para onde?
- Era para ser um segredo, mas você já sabe que eu quero que você vá morar comigo, disse entrando e olhando ao redor.

Colocou o livro sobre a mesinha ao lado da poltrona. Abotoou a camisa e tirou os óculos. Passou a mão pelos cabelos e sem tirar os olhos dos meus, permaneceu calada.

- Você tem certeza que quer ter uma louca na sua casa? Perguntou.
- Não só quero uma louca na minha casa, como quero essa louca para dividir minha vida, respondi, você é tão louca para aceitar isso?

Seus olhos azuis piscavam brilhantes.

- Mas tem uma coisa Jessica, existe uma condição para isso.
- Condição? Que condição?
- Eu não vou viver mais em pecado com você, disse sorrindo.
- Você é que é maluco, que história é essa de viver em pecado.
- Não posso ter uma mulher sob o mesmo teto que eu vivo, usando minhas camisas, queimando meus ovos, sem que ela seja minha esposa.

Ajoelhei à sua frente dela, e segurando sua mão, perguntei:

- Você quer se casar comigo?

Ela não esperava por isto. Ela poderia esperar mais uma das minhas brincadeiras, mas nunca por um pedido de casamento às sete horas da manhã. Ela puxou as pernas para cima da poltrona. Foi a única vez que eu a vi vacilar. Sem soltar da minha mão ela perguntou:

- Você quer dizer na igreja, padre, convidados, vestido de noiva, buque, lua de mel, etecetera?
- Inclusive o etecetera que vai ser o melhor de tudo, disse, sentindo que suas mãos estavam molhadas.
- Mas assim, sem mais sem menos? Perguntou ainda assustada.
- Não, eu pensei muito sobre isso. Acordei cedo, e pensei no que iria fazer hoje. Pensei em cortar o cabelo. Lavar o carro. Colocar o lixo para fora. Mas então percebi que era mais fácil vir até aqui e pedir você em casamento. Depois eu posso fazer as outras coisas. Agora eu preciso saber a sua resposta, porque eu sou uma pessoa ocupada, falei tentando parecer cômico mas com certeza sem muita sorte.
- Eu preciso pensar, disse seriamente.
- Claro, essas coisas precisam tempo, você pode pensar pelo tempo que quiser. Mas não demore, tenho uma fila de candidatas me esperando.
- Espere aqui, disse se levantando e indo em direção ao quarto, fechando a porta atrás de si.

Levantei-me do chão e me sentei onde ela estava. Meu joelho doía, e pensei como estava ficando velho. Nunca tinha prestado muita atenção no apartamento de Jessica. Era uma kitinete, mas as paredes da sala eram forradas de prateleiras com livros. Romances, histórias de aventuras, livros de psicologia, revistas amontoadas. No tapete grosso da sala tinha mais livros, que com certeza ela estava lendo no momento. Fora a poltrona em que eu estava sentado, havia apenas mais um tamborete forrado de couro. Nada de pinturas, quadros, fotos. Um arranjo de flores em um imenso vaso em um canto. Pude distinguir que as flores eram muito parecidas com as que eu tinha na minha sala. O que se via da janela era o apartamento vizinho, onde um outro aluno estava debruçado em uma prancheta de desenhos. Minha exploração por seu apartamento foi interrompida por gritos do lado de fora:

- Júnior! Júnior!

O rapaz do outro apartamento se levantou e veio até sua janela. Olhou para um lado, depois para o outro.

- O que foi Jessica, por que esta ai gritando?

Eu me levantei e fui até a janela. Jessica estava na janela do quarto dela, com o rosto fogueado, e falava com o vizinho.

- Eu vou me casar! Você acredita? Vou me casar! Gritava.
- Vai se casar? Com quem?
- Com ele! Disse apontando para mim.

O rapaz finalmente percebeu a minha presença, me olhou, e perguntou:

- Você vai se casar com ela?
- Acho que vou, respondi sorrindo.
- Graças a Deus, mas você é maluco, disse fechando a janela e as cortinas.

Olhei para Jessica sem entender o que tinha acontecido. Ela ria á rodo. Abriu a porta do quarto e pulando em uma perna só, tentava calçar o outro pé da bota, enquanto ia para a sala. Segurei-a antes que ela desmoronasse no chão. Abraçou-me e disse:

- Sim, eu quero casar com você!

Muitas vezes beijei-a. Mas aquele é o beijo que guardo até hoje comigo. Foi um momento mágico. Mas foi só um momento. Ela me puxou pela mão. Pegou as chaves do carro, e foi me levando para fora.

- Aonde vamos com tanta pressa?
- Ora, eu vou me casar e ninguém sabe disso ainda. Vamos até a sua casa para ligar para todos que eu conheço, eles não vão acreditar. Minha mãe vai cair de quatro. Meu pai vai ter um enfarte, e minhas amigas vão morrer de inveja!
- Mas e a sua mudança?

Ela olhou em volta, pegou o livro que estava lendo e falou:

- Pronto, por enquanto é tudo o que eu preciso, e vamos logo, que eu estou com a língua coçando com vontade de contar para todo mundo a novidade.
- Não podemos ir com o meu carro? Perguntei com cara de terror.
- Você me segue, disse me puxando.

Como eu oferecia alguma resistência, ela deixou de me puxar para me empurrar.

- Vamos pelo amor de Deus, anda um pouquinho mais rápido, que depois de ligar para todo mundo, quem vai cair de quatro por você sou eu.

Deixei de resistir, e segurei-a pela mão, puxando-a pelo corredor até a entrada do prédio. Não a segui, fui mais rápido desta vez. A esperei com a porta aberta, sentado ao lado do telefone e sorrindo.

- Agora eu descobri como fazer você se apressar, disse sentando no meu colo e discando o primeiro de muitos números para os quais ligou naquela manhã.

Depois de quase duas horas de risos, choros de felicidade, fofocas, ela finalmente desligou o telefone. Abraçou-me dizendo:

- Obrigada por fazer o meu dia tão feliz. Todos os dias ao seu lado são felizes.
- Você se engana meu amor, eu só encontrei a felicidade quando encontrei você. Nós iremos ficar juntos para sempre. Você ilumina minha vida, você me faz ser o que eu sou hoje, uma pessoa muito diferente do que era antes.

Ela me beijou. Existe felicidade. Felicidade era sentir o corpo de Jessica junto ao meu. Eu a levei no colo, para o quarto. Não saímos de lá até a noite. Nos amamos de todas as maneiras, e quando nos cansávamos, continuávamos a nos acariciar, e a dizer o quanto amávamos um ao outro. Quando finalmente resolvemos que seria muito bom comer alguma coisa, já passava das dez da noite. Perguntei o que gostaria de comer.

- Você não se preocupe, eu vou fazer alguma coisa para nós, rapidinho, disse se levantando da cama e colocando a minha camisa.

Não era bem o que eu tinha em mente, mas não iria dizer nada que a deixasse irritada comigo. Ainda bem que pude escutá-la da sala, o que deixou os meus temores de lado.

- Seu Manoel, nós precisamos de dois cachorros-quentes com tudo que tenho direito e no meu capricha no ketchup!

Estava gritando com o dono da carrocinha na frente da minha casa! Algum tempo depois entrou no quarto com uma bandeja, e dois imensos sanduíches nela. Em um castiçal, uma vela acesa.

- Pronto meu urso! Aqui esta o seu jantar, disse orgulhosa.
- E o que vamos beber? Perguntei sorrindo.
- Ih! Esqueci! Respondeu saindo para a sala novamente.

A janela se abriu novamente, e outra vez falou com o Sr. Manoel:

- Ô seu Manoel, esqueci de pedir bebida, o senhor me vê duas cocas bem geladas?
- Claro Jéssica é prá já.

Voltou para o quarto, sentou-se no meio das minhas pernas. Abriu as latas de refrigerante, tomou um pouco de cada para ver se estavam geladas. Enrolou seu cachorro quente em um punhado de guardanapos, se aconchegou no meu peito e enquanto seu pé mexia tentando seguir o ritmo da música que tocava no rádio foi mastigando com vontade. Mesmo assim, continuava a falar, dizendo como aquilo estava bom, que devíamos fazer mais vezes.

Olhei em volta. Ela inclinou a cabeça para saber o que eu estava procurando.

- Bom, eu disse, essa cama é bem resistente, o apartamento deve agüentar bastante tempo também. Se o seu Manoel continuar ai na frente, podemos fazer isso todos os dias.
- Jura? Promete que não vai cansar de mim?
- Só se eu cansar de viver meu amor, disse beijando-a e me sujando todo com o ketchup do sanduíche dela.

Parecia que tudo conspirava contra mim. A bebida já não fazia o mesmo efeito de antes. Devo estar me acostumando com este gosto na garganta, pensei. Como pude me acostumar tão facilmente a sofrer? Como pude sair do paraíso que vivia para mergulhar neste inferno de dor?

- A dor que você sente, e a mesma que eu carrego.
- Você sente o que eu sinto? Você sente o seu coração quase parando? Você sente o ar entrando com dificuldade nos pulmões? Não você não sente.

Silêncio. Como o silêncio podia ser tão desconfortável como estava sendo para mim? Onde estavam as respostas que eu procurava?

- Meu amor gostaria de poder dizer alguma coisa que fizesse você se sentir melhor, mas não consigo. Eu vou embora. Você não precisa de mim agora. Você esta muito abatido, muito cansado. Minha presença esta fazendo mal a você. Você sofre muito comigo.
- Não! Fica!
- É melhor eu ir. Enquanto eu estiver aqui falando com você, você continuará a sofrer.
- Por favor, não vá. Eu preciso muito de você. Mesmo que não possamos ficar mais juntos. Mesmo que seja dessa maneira, fica comigo. Se hoje eu estou amargurado, amanhã estarei pior sem ter você. Fica por favor, eu lhe peço, não me abandone.

Silêncio novamente. As lágrimas lavavam o meu rosto. O soluço não me deixava falar mais nada. A dor que vinha do coração me dilacerava.

- O sonho ficou distante agora, disse a voz.
- Meu sonho sempre foi você. Ficar sem você se tornou um pesadelo, que vivo mesmo acordado. Em algum lugar vou procurar a resposta do por que. Mas deve existir alivio para o que eu estou sentindo. Gostaria de conseguir ver algum caminho a tomar. Gostaria que nosso sonho nunca terminasse. Por que temos que acordar? Por que não podemos viver o sonho eternamente?
- Por que a realidade nos faz acordar todos os dias para as tristezas em que vivemos meu amor. O sonho é apenas a pausa que temos antes de encarar as coisas que o destino insiste em nos colocar a prova.
- Eu quero o meu sonho de volta! Quero a minha vida de volta! Disse chorando com a cabeça entre as mãos.

Sonho

Nosso casamento foi na capela da universidade. Se pelo meu lado havia somente o corpo docente, pelo lado de Jessica existia mais de cem pessoas. Conhecia a cidade inteira! E que noiva linda! Quando as portas se abriram e ela entrou com seu pai ao som da Ave-Maria, eu me senti a pessoa mais feliz do mundo. Enquanto caminhava, parecia que a igreja ia se iluminando. Não deixava de me encarar, enquanto vinha em minha direção. Seu pai a entregou para mim, me cumprimentando. Tomei sua mão e ficamos de frente para o padre. Apesar da sua luva de renda, senti sua mão quente e molhada. Estava nervosa, talvez mais nervosa do que eu.

Quando o padre perguntou se havia alguém que poderia ter alguma coisa contra nosso casamento, não pude resistir e olhei para trás. Aquela mulher deveria ter centenas de pretendentes, mas havia me escolhido. Se durante toda a minha vida, consegui as coisas com muita luta e sofrimento, aquela era a minha hora da sorte. Coloquei a aliança em seu dedo, fazendo dela minha esposa. Eu me converti em seu marido, e jurei que a amaria no melhor e no pior, na saúde e na doença, até que a morte nos separasse. Quando levantei seu véu para beijá-la, seus olhos azuis estavam molhados de lágrimas. Era o dia mais feliz para ela também. Nós nos uníamos perante Deus, mas também estávamos fazendo um pacto entre nós. Seríamos um só daquele dia em diante. Nosso sonho estava apenas começando. Seríamos mais um par de estrelas no paraíso. Eu tinha certeza disso.

Ao deixarmos a igreja, fomos recepcionados pelo sol. Brilhava mais que os outros dias. Tudo tinha mais cor.

Sempre fui paciente. Mas aquela fila de pessoas para nos cumprimentar parecia não ter mais fim! Um a um me diziam que eu era um sujeito de muita sorte. Eu sabia disso.

Na recepção fiquei distante de Jessica. Eram muitas pessoas para conversar. Todos queriam sua atenção. De longe às vezes me mandava um beijo, que eu procurava apanhar no ar. Nos encontramos novamente para cortar o bolo. Escutamos os brindes de saúde, prosperidade e alegria. Quando finalmente conseguimos nos despedir de todos e virei a chave do meu carro, senti sua mão de encontro a minha.

- Eu falei tanto hoje, mas não disse que amo você ainda, disse.
- O que sua boca não falou, seus olhos já me disseram, respondi. Eu amo muito você meu amor.

Não me contive, e a puxei para os meus braços. Estávamos juntos o dia todo, mas sentia saudades do seu abraço forte, do sabor do seu beijo. Foi nosso primeiro beijo depois que nos casamos. Ele foi forte, quente de paixão.

A muito custo me soltei de seus braços, para dirigir o carro pelas ruas do campus, até chegar à estrada. Tínhamos reservas em um hotel a beira da praia, mas não poderíamos viajar vestidos a caráter. Passamos em casa para nos trocar. Fomos saudados pelo seu Manoel, que fez questão de beijar a noiva. Abrimos caminho na montanha de presentes que enchia nossa sala para chegar até o quarto. Jessica não estava com pressa desta vez. Esparramou-se na cama com os braços abertos.

- Que dia! Disse.
- Esse é o primeiro dia de nossas vidas meu amor. De agora em diante não ficaremos mais separados.
- Não é mesmo? Falou alegremente.
- É meu amor, falei me deitando ao seu lado. Você não quer seguir com a viagem?
- Quero, mas queria ficar aqui um pouco, colocar minhas idéias em ordem. Mesmo para mim foram muitas emoções.
- Ótimo, você fica deitadinha ai então, que eu vou tomar um banho, trocar de roupa, e tentar desta vez colocar a meia de cor certa.
- Tomara que você erre de novo, isso é sua marca registrada, falou fechando os olhos.

Não fui para o banheiro. Apenas me sentei ali e fiquei contemplando-a. Ela brincava com a ponta do cabelo. Como eu a amava. Agradeci a Deus por aquela dádiva que ele me dava. Jessica abriu os olhos e me olhou. Nunca seus olhos foram tão expressivos como aquele momento. Nunca foram tão azuis. Nunca foram tão doces.

- Você esta sentindo o meu amor? Perguntei.
- Foi ele que me fez abrir os olhos. Foi o seu sentimento que me alcançou enquanto pensava na minha felicidade.

Levantei-me e fui em sua direção. Tirei o paletó e deixei que ele caísse no chão. Jessica abriu os braços e me recebeu entre eles. Não conseguia parar de beijá-la. Desabotoei cada botão de seu corpete branco. Ela não se conteve, e de joelhos na cama, tirou minha camisa, fazendo-a voar pelo quarto. Desafivelou meu cinto, enquanto eu abria seu vestido. Nossa respiração mostrava nossa ansiedade. Beijei cada centímetro de seu corpo, enquanto ela acariciava meus cabelos, e dizia que me amava. Nossos corpos se uniram, e nossas almas se encontraram em um plano diferente, onde o prazer nunca acabava. Era o nosso sonho se concretizando.

Você não consegue me esquecer? Perguntou a voz. Era mais uma daquelas perguntas que não teriam respostas. Mas eu não silenciei desta vez.

- Eu não quero esquecer você, é diferente. Eu não queria é estar aqui sozinho. Queria que você pudesse estar comigo, me abraçando, me beijando, que eu pudesse acariciar novamente seus cabelos. Como eu gostaria de poder trocar os anos que me restam por algumas horas com você!

Pronto. Agora era a lua que surgia. A festa estava armada. Estrelas, lua. O que mais? Será que alguém ainda ia aparecer e soltar fogos? Ninguém respeitava a minha dor? Não podia ficar mais ali. Paguei a conta, mas não tenho certeza de quanto ela era. Ao me levantar, percebi que tinha realmente bebido demais. O garçom veio em meu socorro me segurando pelo braço. Perguntei aonde eu estava.

- O senhor não sabe? Quer que eu chame um taxi para levá-lo para casa?
- Por favor, disse me sentando novamente.

O mundo rodava a minha volta. Era mais de uma lua que eu via no céu. As estrelas pareciam estar passeando e girando.

- Eu disse para você não beber tanto.
- O que mais eu poderia fazer?
- Você vai para casa agora e vai descansar. Amanhã estará melhor.
- Você vai estar lá me esperando?

Silêncio.

- Eu vou sempre estar junto de você, nunca vou abandoná-lo.
- Você já me abandonou, disse sem esconder toda a tristeza que eu carregava.

Era um fardo que pesava muito. Quem nunca amou não sabe o que eu estou falando. A dor da perda, da solidão. Quem nunca conheceu a verdadeira felicidade, não sabe a dor de perdê-la. Eu sei. Aprendi a carregar essa tonelada de desespero. Ela me esmagava a cada passo.

- Você não consegue lembrar dos nossos momentos felizes?

Claro que consigo. Eles estão todos aqui na minha cabeça. É por eles que eu choro hoje. Se nunca os tivesse vivido, não teria pelo que sentir falta. Não teria pelo que me desesperar.

Alegria de Viver

Nossa lua de mel foi maravilhosa. O sol nos perseguiu por todo o caminho. Apesar de não sermos ricos, nós conseguimos ficar em um bom hotel, de frente para o mar. Nosso quarto era grande, e a cama era king size. Nem Jessica conseguiria ocupá-la inteira.

Largamos as malas em cima da cama, colocamos nossa roupa de banho, e descemos para a praia. Existia uma área reservada do hotel, com cadeiras, guarda-sol e um pequeno bar plantado na areia.

Ninguém podia deixar de notar Jessica. Usava um maiô branco, cavado. Seus cabelos loiros brilhavam. Orgulhava-me de minha esposa. Os outros podiam olhar, mas era eu que a possuía. Ela não conseguia ficar parada. Largou sua bolsa plástica do lado da cadeira e correu para o mar. Furou as ondas, nadando para além da arrebentação, cruzando toda a praia na diagonal. De lá fazia sinais me chamando. Não arrisquei. Nadava igual a um prego. Contentei-me em acompanhá-la andando pela beira d’água. Ela venceu rapidamente a distância que nos separava.

- O mar esta ótimo, por que você não vem comigo? Disse alisando os cabelos para tirar o excesso de água.
- Infelizmente meu amor, minha maior conquista atlética foi ter ficado no banco do time de basquete, quando era criança.
- Você é bobo! Devia aproveitar mais.
- Eu estou aproveitando. Você esta me dando todo o prazer que eu quero. Ver você sorrindo, alegre é tudo o que eu quero.

Ela me abraçou me molhando todo. Seu beijo estava salgado. Ela me soltou para voltar para o mar, mas eu a puxei para mim.

- Aonde minha sereia pensa que vai? Você não acha que já me deixou muito sozinho?
- Vou dar mais uma volta, você me acompanha de volta até a frente do hotel.
- Tudo bem, mas se cuide.

Quando ela se sentou ao meu lado estava com a respiração apressada. Tomou água e falou:

- Poderia morrer agora, tenho tudo o que sempre desejei, o mar, o sol, e um marido maravilhoso do meu lado.
- Não fale nunca em morrer, disse. Você tem que viver para sempre, para poder me amar.
- E você pensa que vai se livrar de mim assim tão fácil? Esqueceu-se como nos encontramos? Nossas almas vivem para sempre, e sempre eu vou amar você, estando viva ou morta.
- Eu sei, mas não fale mais sobre isso. Quero você bem vivinha, para sempre ter suas mãos com as minhas, poder abraçar você, beijar sua boca carnuda e nunca deixar de sentir o seu corpo junto do meu.
- É nisso que você pensa? Disse com malícia.
- Em que?
- No meu corpo junto do seu?
- Claro!
- Então vamos ver se consegue agarrar esse corpo aqui. Se me pegar sou sua! Disse se levantando e correndo em direção ao hotel.

Eu nunca iria alcançá-la. Além de mais jovem, parecia movida a energia solar. Enquanto eu dava meus primeiros passos, já tinha posto os pés na entrada do hotel. Quando alcancei o elevador, ele já estava no nosso andar. Quando entrei no quarto, já estava no banho.
Me escutou fechando a porta e do banheiro gritou:

- Perdeu, perdeu! Você vai ter que pagar para mim agora.
- Pagar o que? Perguntei, tirando a camiseta ensopada de suor.

Ela saiu do chuveiro, enrolada na toalha. Os cabelos pingando molhavam o carpete do quarto. O rosto corado e sorrindo.

- Você perdeu, e agora é você que é meu!

Soltou a toalha e me abraçou. Eu ainda quis falar que estava suado, seria melhor eu tomar um banho. Não quis saber. Arrastou-me para a cama se sentando em cima da minha barriga. Chacoalhou os cabelos no meu rosto e fez cócegas em mim. Seus seios tocavam meu peito. Transformou-se de menina em mulher. E me fez sentir novamente que fui tocado por um anjo. Aquela mulher, com o seu carinho, com o seu amor, me transformava em um jovem de 20 anos. Não sentia mais preguiça, não queria mais dormir. Queria poder ficar acordado todos os minutos ao seu lado, para não perder uma só palavra sua, um só gesto seu. Tinha disposição para tudo, e até o cigarro eu abandonei. Ela não gostava que eu fumasse, e sempre abria todas as janelas, mesmo nos dias frios. Uma vez antes de abrir a porta, perguntou se eu os trazia comigo. Quando disse que sim, falou para eu escolher quem iria entrar em casa, eu ou os cigarros.

Minha resposta que nós dois íamos entrar me rendeu uma hora de espera do lado de fora no corredor. Jessica era assim. Decidida. Dificilmente voltava atrás no que dizia. Eu adorava isso nela. Mostrava firmeza de caráter. Dava-me sensação de segurança. Sentia-me mais alto ao seu lado. Não conseguia tomar nenhuma decisão sem antes falar com ela. Não que isso me fizesse tomar decisões acertadas. Jessica se arriscava sempre. Procurava sempre a maneira mais difícil de fazer as coisas. Desde que lhe rendesse uma pequena dose de adrenalina, estava tudo bem. Se lhe rendesse uma grande dose de adrenalina, estava ótimo! O problema é que ela sempre me carregava com ela nessas pequenas aventuras. Eu não gostava de contrariá-la. Meu maior prazer era vê-la sorrir. Era uma espécie de jogo. Até as meias às vezes trocava propositadamente, para que ela pudesse brincar e rir.

- Você não esta com fome, perguntei para Jessica que descansava no meu ombro.
- Estou morta de fome, disse se animando, o que vamos comer?
- O que este escravo pode oferecer para sua princesa?

Ela se espreguiçou. Suas pernas se entrelaçaram as minhas.

- O meu escravo pode... me beijar, disse me abraçando.

Deus, eu não vou cansar nunca disso. Mas a gente precisa comer. E Jessica precisa recarregar as baterias.

- Eu posso beijar você sempre, mas não seria melhor nós nos vestirmos e procurar um bom lugar para comer?
- Eu poderia comer um urso, disse me mordendo o ombro.

A muito custo nos levantamos, e após tomarmos banho juntos, saímos do quarto. O hotel possuía restaurante, mas queríamos caminhar um pouco. Sentir o ar da noite. Olhar as estrelas. Andar sem destino de mãos dadas. Seguimos pelas ruas até que achamos uma pequena taverna, com apenas 6 mesas, iluminada com castiçais de vela. Comida italiana, a minha favorita. De repente me veio a mente o desenho animado, ‘A dama e o vagabundo’. Existia inclusive música de fundo, italiana é claro. Jessica pediu macarrão alho e óleo e eu uma gostosa macarronada ao sugo. Com um honesto vinho tinto, foi uma das noites mais alegres que me lembro. Não era alta temporada, e o dono do lugar sentou-se conosco, e não se cansou de contar histórias divertidas sobre a Itália. Achou nos um casal tão simpático que não quis cobrar as bebidas. Agradecemos e prometemos voltar outra vez antes de partirmos.

Andamos a esmo, e acabamos sentados em um banco próximo ao hotel.

- Onde estaremos daqui a dez anos, perguntei.
- Nos amando? Disse olhando para o mar.
- Nós nos amaremos por toda a vida, mas eu gostaria de saber o que o futuro reserva para nós.
- Não pense nisso. Viva o presente. Temos que aproveitar todos os momentos juntos. Procurar em tudo alguma coisa para nos sentirmos felizes de estarmos vivos e juntos. Experimentar de tudo um pouco, para não se arrepender mais tarde. Nossa vida será o que escolhermos para ela, disse filosoficamente.

Jessica por um momento me pareceu triste. Mas a impressão logo se dissipou quando ele se levantou, tirou os sapatos e correu pela areia da praia.

- Vamos tomar um banho de luar? Gritou me chamando.
- Você é maluca, gritei de volta.
- Sou maluca por você, vem logo!

Caminhei na sua direção, afundando na areia fofa. Ela fugiu de mim.

- Siga as pistas, disse soltando os cabelos.
- Que pistas?
- Estas, disse soltando a parte de cima do conjunto e jogando na areia.
- Você é realmente maluca!
- Eu já falei, sou maluca por você, retrucou largando a saia mais a frente.

Eu a seguia recolhendo suas roupas. Próximo ao mar, ela já havia deixado o sutiã.

- Nós vamos ser presos!
- Para sempre espero e na mesma cela, disse girando a calcinha por cima da cabeça e jogando para trás, enquanto entrava na água.

A espuma a envolveu e ela sumiu nas ondas. Voltou a tona novamente, e caminhou para mim, que estava extasiado com tanta beleza. A lua, as estrelas e aquela bela mulher, que era minha.

Minha? Mas por que por tão pouco tempo? Por que ela tinha que me deixar? As luzes passavam rápido pela janela do taxi, onde estariam indo?

- O senhor bebeu todas hein doutor? Disse o motorista.
- Bebi menos do que queria, ainda estou vivo não estou? Respondi.
- Espero que sim, nunca fiz corrida para assombração, respondeu rindo.
- Pois meu amigo, desta vez, quem esta sentado aqui é um fantasma.

O motorista me encarou pelo retrovisor. Após me estudar por alguns momentos, viu que o que eu falava era fruto da minha bebedeira. Eu devia ter acabado de entrar em uma longa lista de pessoas estranhas que ele carregava de um lado para o outro.

Acho que dormi durante o trajeto, pois não percebi quando o carro parou em frente a minha casa. Somente senti a mão que me ajudava a subir os degraus até a minha porta. Tentei usar a chave, mas o buraco da fechadura teimava em fugir. Também precisei de ajuda para entrar em casa. Por último ainda me lembro de escutar:

- Doutor, eu passo aqui amanhã para receber a corrida.

Devo ter concordado, porque o motorista se foi. Deitei de costas na cama, jogando os sapatos para qualquer lado. Apesar do porre, não conseguia dormir. Olhava para o teto, que parecia vir na minha direção girando. Com dificuldade me levantei e fui até o banheiro, onde me ajoelhei em frente à privada e vomitei tudo o que tinha comido no almoço.

Que situação meu Deus! Sozinho, caído no banheiro, fedendo bebida. Mesmo que a sensação seja horrível, ter colocado para fora um pouco da bebida me fez bem. Tirei a roupa e abri o chuveiro. A água fria bateu como uma marreta na minha cabeça que doía muito. Não sei quanto tempo fiquei ali, mas foi o bastante para que as minhas idéias clareassem um pouco. Desliguei o chuveiro e me sentei no pequeno tamborete, apoiando os pés no bidê. Senti vontade fumar. Que hora seria?

Tinha perdido a noção do tempo. Estava escuro lá fora. Minhas mãos tremiam. Mas não estava frio. Era o efeito de tantas beberranças, de noites sem dormir.

Estiquei a mão e alcancei a minha toalha ‘ele’ que estava ao lado da toalha de Jessica. Não me enxuguei. Apenas usei-a como travesseiro para apoiar minha cabeça no azulejo. Na outra toalha, ainda estava o cheiro dela. Podia senti-lo mesmo que não fosse verdade.

- Porque você não me deixa ir? Perguntou a voz. Eu não estou fazendo bem para você, você apenas esta sofrendo mais.
- Você quer me deixar?
- Não, eu quero ficar com você, mas quero você feliz. Você aos poucos esta virando apenas uma caricatura do que era. A culpa é minha. Eu deixei você, mas insisto em ficar ao seu lado.
- Você pensa que se você for embora eu ficarei melhor? Perguntei.
- Não sei, mas a minha presença também não esta ajudando você.
- Eu queria ter um cigarro agora, disse.
- Bruno, não fume, isso faz mal, mais do que a própria bebida.
- Eu sei, mas eu precisava de um cigarro agora.
- O que você procurou no copo, você não vai achar na fumaça de um cigarro.
- Diga-me então onde eu vou encontrar o que procuro, pedi.

Silêncio. Muito silêncio. Um silêncio infernal! Fui para o quarto. Vesti-me novamente. Ficar ali não era bom. Precisava comprar cigarros. Ao calçar os sapatos, olhei de relance o relógio. Era meia noite. De certa maneira aquilo me animou. Teria algumas horas de escuridão ainda antes que o sol viesse novamente querer dizer que o mundo era um lugar bonito e maravilhoso. Poderia suportar as estrelas e a lua. Mas o sol! O sol sempre iria me lembrar de Jessica.

O Sol

Nossos dias naquele lugar foram mágicos. O sol fazia com que Jessica brilhasse mais do que o normal. Sua pele tornou-se morena logo nos primeiros dias, e seu cabelo ficou ainda mais loiro. Não ficávamos longe um do outro nunca, a não ser quando Jessica resolvia fazer alguma coisa radical.

Levou-me para uma volta de jet-ski, mas fez tantas piruetas e curvas fechadas que me deixaram enjoado. Recusei-me terminantemente a pular de uma pedra de asa delta. Disse-me que podia esperá-la lá embaixo e com um adeusinho, levantou vôo no azul do céu. Eu sabia que estava com um piloto experiente, mas aquilo tudo não deixava de me dar um frio na espinha. Não gostava nem de pensar no que poderia acontecer.

Ao pousar na areia da praia, Jessica estava radiante, se despediu do piloto dizendo que no dia seguinte ia fazer aquilo de novo.

- Não vai não, eu disse.
- Não? Por que?
- Você pode ser um anjo, mas não tem asas próprias, e meu coração ficou voando com você. Só agora voltou a bater.

Ela colocou a cabeça no meu peito.

- Na minha opinião esta batendo muito forte, disse me beijando.
- É que ele só bate por você, respondi abraçando ela forte.

Tudo que é bom tem fim um dia. E nossos dias naquele lugar tinham acabado. Precisávamos voltar para casa, para nossos afazeres. Ela ficou triste de deixar aquele paraíso para trás e eu me dividi entre a tristeza e a alegria. Também tinha aproveitado aquele lugar, mas tinha curiosidade como seria a nossa vida de casados. Com certeza não seria nada monótona, pensei.

Jessica pediu para dirigir no retorno, mas eu a convenci a ficar de co-piloto, escutar música e aproveitar a paisagem. Eu já tinha vivido muitas experiências limite para arriscar a deixá-la a fazer mais loucuras.

Ela sentou-se ao meu lado, de óculos escuros, seu inseparável boné, shorts curtos branco e camiseta azul, que logo percebi ser minha. Aumentou o volume do rádio, e ia acompanhando o compasso da música com as mãos, os pés e a cabeça. Cantava as partes que sabia, nas outras apenas cantarolava. Incentivava-me a acompanhá-la. Se feito de maneira normal, nosso retorno levaria um tempo enorme. Mas com Jessica ao meu lado, a viagem pareceu ser bem curta. Ela me eletrizava. Eu já sabia o motivo de tanta alegria. Era o sol. Se existia alguma coisa que deixava Jessica alegre era um dia ensolarado. Ela se soltava, ria por qualquer coisa. Em dias de chuva, ficava em casa, com as janelas fechadas, lendo. Seu humor se modificava, e até sua forma de se vestir. Falava pouco. Nesses dias gostava de ir para a cama mais cedo, cansada. Eu abençoava cada dia de sol que recebíamos, pois então eu tinha o máximo do meu amor.

Quando chegamos em casa, fomos saudados pelo seu Manoel.

- Olá Jessica! Olá..., Desculpe-me, mas qual é o seu nome?
- Bruno seu Manoel, Bruno, respondi chateado. Era eu que morava ali a tanto tempo e o sujeito nem sabia o meu nome. Mas o da minha mulher ele logo lembrou.

Jogamos as malas na sala.

- E agora meu amor? Perguntei. Ainda temos o resto da tarde só para nós. Amanhã a vida continua.
- Não sei, mas eu não quero largar você. Vou morrer de saudades o dia inteiro até que fiquemos juntos a noite novamente.

Tirou seu boné e colocou na minha cabeça do lado contrário. Pendurou-se no meu pescoço e ficou olhando para mim com aqueles olhos azuis lindos.

- Tive uma idéia, disse pegando-a no colo.
- Eu conheço suas idéias, disse rindo.
- Mas essa é nova!
- Sei... Mas se você estiver me carregando para o quarto ela não vai ser assim tão nova, mas eu vou adorar do mesmo jeito.
- Bom, eu estou carregando você para o quarto, mas pensei também em chantily, morangos, champanhe.
- Estou gostando dessa idéia, continue.
- Pensei em pegar chantily, morangos e usar seu corpo como taça, o que acha?
- Acho ótimo, mas e o champanhe?
- Você logo vai saber, disse fechando a porta atrás de nós.

Nunca estive tão certo quando pensei que nossa vida não seria monótona. Ao chegar em casa, após o primeiro dia de trabalho, saia fumaça preta pela janela da cozinha. Entrei correndo, e encontrei Jessica deitada no sofá lendo. Corri para a cozinha, que estava com a porta fechada. Os restos de alguns bifes carbonizados dentro da frigideira eram a causa da fumaça.

- Meu Deus, disse Jessica, esqueci da frigideira!

Desliguei o fogão, e coloquei a panela dentro da pia com água. Tirei Jessica da cozinha e fechei novamente a porta, para que a fumaça não tomasse conta da casa.

- Desculpe-me meu amor, queria fazer uma surpresa para você, nosso primeiro jantar. Mas me distraí com o livro que estava lendo. Ainda bem que o meu herói chegou e salvou a casa. Esta zangado comigo?

Não podia ficar nervoso com ela. Apenas pude sorrir e abraçá-la.

- Claro que não, isso acontece. Preocupei-me com a sua segurança. Os bifes da frigideira já estavam mortos mesmo. Você só estava cremando os corpos, disse brincando com ela.
- Sério? Você não se chateou? Perguntou com uma lágrima no olho. Eu queria fazer alguma coisa especial, mas nunca me passou pela cabeça colocar fogo na casa.
- Estou falando sério. Foi só um acidente. E você esta bem, isso é que importa. Vamos comer um sanduíche do seu Manoel, e você vai fazer ele ser especial.

Ela se alegrou. Foi até a janela, e gritou para o homem da carrocinha:

- Seu Manoel se prepara que estamos indo comer fora, tem que fazer reserva aí no seu restaurante?

O homem riu, e respondeu:

- Para a senhora sempre vai haver uma mesa vaga.

Ela vestiu novamente a saia, que estava em cima da poltrona e prendendo o fecho, calçou os sapatos altos. Eu admirava sua competência em se arrumar tão rapidamente. Quando cheguei, ela estava usando somente minha camisa, e em um minuto estava pronta para sair.

- Como quer o seu cachorro quente Jessica, perguntou Manoel.
- Quero duas salsichas, molho, ketchup, mostarda, maionese, batata frita e queijo ralado, disse.
- E o seu senhor... Desculpe me esqueci.
- Bruno seu Manoel, Bruno, respondi já nervoso com aquela situação.
- Desculpe Bruno, como vai querer o seu.
- Como sempre seu Manoel.
- E o de sempre é? Perguntou.

Eu desisti. Aquele homem nunca ia se acostumar comigo. Ele sempre saberia tudo sobre Jessica, mas não iria gravar o meu nome, e nem que o meu cachorro quente era o normal, sem nada especial.

Sentamos no muro, ao lado da carrocinha. Diversas pessoas passaram por nós cumprimentando Jessica. Nada mais me surpreendia. Morava ali há anos, e muitas vezes tinha visto aquelas pessoas, mas nunca havia trocado nem um olá com elas. Mas agora todas conheciam minha mulher.

- Lindo dia, não Jessica, falou um senhor.
- Seu namorado? Perguntou outro.
- Bonita como sempre, disse um sujeito, que fez Jessica sorrir, mas que me deixou com ciúmes.
- Quem são? Perguntei.
- É gente da vizinhança. Quando você não esta, eu ando pelas redondezas, e parece que agora todos me conhecem. Você não os conhece?
- Os rostos são familiares, mas não sei seus nomes e nem o que fazem.
- Ora é fácil. Esta vendo aquela mulher varrendo a frente da padaria? É dona Aurora, viúva, e tem dois filhos pequenos. Aquele senhor no ponto de ônibus é o Sr. André, aposentado, que vive na esquina. Aquelas duas conversando, que não param de olhar para nós, são as fofoqueiras do bairro. O meu incêndio na cozinha vai rodar essas ruas daqui a poucos minutos. Aquele menino empinando pipa é Felipe, filho de Guiomar, que sempre encontro no verdureiro.

Uma a uma todas as pessoas me foram apresentadas por Jessica. Ela conhecia todas! Sabia o que faziam, onde moravam. E acenavam, sorriam em sua direção.

- Qual o seu segredo? Perguntei.
- Segredo? Eu não tenho segredos, disse lambendo a maionese dos dedos.
- Como conheceu tantas pessoas em tão pouco tempo, e como fez que todas gostassem de você?
- É simples, um minuto de conversa com cada uma, um sorriso. Estamos todos ligados de alguma forma. Basta descobrir qual a conexão. Acho que sou boa nisso, falou puxando o resto do refrigerante pelo canudinho fazendo barulho.

Para ela tudo era simples. Era sempre eu que complicava as coisas. A explicação dela fez aquilo parecer fácil, mas o era somente para Jessica. Possuía um magnetismo pessoal que nunca vira em outra pessoa. Não era só sua beleza. Era algo mais, que eu não sabia definir. Era a sua naturalidade, seus gestos sem estudo, sua maneira franca de falar.

- O sol sumiu, disse Jessica, vamos entrar?

Vamos deixar um pouco Bruno, ele precisa caminhar um pouco, e quem sabe deixar que a brisa noturna melhore seu astral.

Não adianta segui-lo, não vou conseguir ajudá-lo agora. Minhas tentativas até agora foram em vão. Eu o amo muito, e não consegui descobrir uma maneira de traze-lo de volta a vida. Nunca quis magoá-lo, mas por minha culpa ele vive como um zumbi, sem vontade.

Nós vivemos o amor em sua plenitude, nunca nos cobramos, nunca brigamos. Sempre tivemos bons momentos. Tinha mais experiência do que eu tinha. Era mais reservado, de poucos amigos. Eu me expressava melhor, estava sempre alegre. Minha vida foi muito boa. Meus pais me ensinaram desde pequena a procurar, mesmo nos momentos difíceis por alguma coisa de bom. E eu usava isso na minha vida.

Quando me mudei para perto da universidade, a princípio me senti solitária. A solução era conhecer pessoas, e comecei por aquelas que viviam iguais a mim, estudando. Meu primeiro amigo foi o meu vizinho da frente. Parecia ser uma pessoa muito séria. Ficava de costas para a janela, e todas as minhas tentativas para chamar sua atenção eram improdutivas. Pensei que talvez ele fosse surdo. Coloquei música alta, bati pratos, cantava. Como resposta, ele fechava a janela e as cortinas.

Aquilo estava me deixando doente.

Um dia peguei alguns grãos de feijão e atirei na janela dele. Nada. Continuava debruçado sobre algumas plantas, fazendo medições e cálculos. Queria guerra. Apanhei um pequeno peso de papéis e atirei contra o vidro da janela dele, que se quebrou fazendo um grande barulho.

Aturdido, ele levantou-se e veio reclamar:

- O que foi, ficou louca? Disse com cara de poucos amigos.
- Viva, você não é surdo! Disse sorrindo.
- Claro que não, mas vou ficar se você continuar a fazer todos estes barulhos.
- Por que nunca reclamou?

Ele me olhava sem entender.

- Não sou esse tipo de pessoa. Respeito o espaço dos outros. Você parecia estar feliz ai na sua casa.
- Mas não estou, estou tentando chamar sua atenção, e é claro que agora eu consegui, mas vai me custar uma janela.
- Você quebrou o vidro só para chamar minha atenção?
- É, você nunca olhava para cá.
- Espere, disse deixando a janela.

Aguardei alguns instantes e minha campainha tocou, fiquei em dúvida entre atender ou esperar meu vizinho voltar. Corri até a porta, mas mantendo um olho na janela.

Quando a porta abriu, lá estava ele.

- Viu como é a forma correta de chamar a atenção das pessoas? Todos os apartamentos possuem uma.

Não pude deixar de ficar vermelha.

- Acho que isto é seu, disse me estendendo a mão com o peso de papel.
- É, é meu, disse sem jeito.
- Agora que você chamou minha atenção, em que posso ajudá-la?
- Na verdade em nada, eu só queria conhecer meus vizinhos.
- Você poderia me devolver esse seu peso de papéis? Acho que as pessoas do prédio vão ficar mais seguras se eu guardar para você. E você também vai economizar dinheiro não tendo que consertar janelas.

Não pude deixar de rir. Ele falava tudo de uma maneira séria e ao mesmo tempo engraçada.

- Tome, fica sendo meu presente para você, disse entregando-lhe o peso.
- Ótimo, esta noite as pessoas poderão dormir em paz. Meu nome é Péricles Antunes Júnior, mas por motivos óbvios todos me chamam somente de Júnior. Faço engenharia mecânica, e não sou tão inteligente, por isso estudo tanto.
- Prazer Júnior sou Jessica, e começo na semana que vem meu curso de psicologia.
- Como aluna ou paciente? Perguntou seriamente.
- Como aluna, claro!
- Entendo, respondeu desconfiado, bom, se precisar de alguma coisa, eu estou na porta ao lado, mas, por favor, aperte a campainha, ou vou mandar meus advogados falar com você.
- Advogados? Só porque eu quebrei o vidro da sua janela?
- Não, eu não vou processar você, os advogados que eu estou falando são os que vivem me cobrando e ameaçam tirar até minhas calças. Se você não usar a campainha, vou dar o número do seu apartamento para cobrança.

Adorei. Mesmo que a sua aparência fosse séria, tinha um excelente senso de humor. Despediu-se, brincando de jogar meu peso para cima e apanhar novamente. Quando passei pela janela, ele estava colando um pedaço de plástico no buraco que eu havia feito. Fez um sorrisinho maroto e fechou a cortina na minha cara. Estranho, mas divertido, pensei.

Seria um grande amigo meu nos anos que se seguiriam. Mas nunca mudou sua maneira de me tratar ou de agir. Aos poucos conheci todas as pessoas do prédio, até porque algumas também eram novas ali, e procuravam companhia.

Já não estava deslocada.

A faculdade também era divertida. Quando escolhi psicologia, eu imaginava aprender mais sobre a natureza humana. Nunca soube como seria divertido. Os professores eram meio amalucados, e com certeza precisam eles mesmos de uma seção de análise.

Muitas pessoas me achavam bonitas. Durante os anos em que estive no campus, tive alguns romances, nada muito sérios. Alguns deles eram muito imaturos, outros arrojados demais. Em alguns eu causava medo. De qualquer maneira estava tão enfiada nos estudos que não tinha muito tempo para amor. Queria conseguir boas notas para no futuro conseguir ser uma boa profissional ou então conseguir um bom emprego.

Quando encontrei Bruno na palestra alguma coisa mudou em mim. Eu já estava olhando para ele enquanto escutava o que se falava no palco. Ele era um homem bonito, alto, mais de um metro e noventa. Os cabelos começavam a ficar grisalhos, mas tinha olhos expressivos. Sua concentração me chamou atenção. Durante mais de uma hora não mexeu um músculo. Na a pausa, usei a desculpa de perguntar-lhe alguma coisa para me aproximar. Sua gentileza no falar, seus gestos me cativaram. Talvez pela minha pouca idade, não consegui sua atenção imediata. Mas quando ele se embaraçou nos fios do microfone e caiu nos meus pés, eu sabia que tinha conseguido chamar sua atenção.

Não tinha errado no julgamento. Tinha um ponto de vista parecido com o meu, e conversar com ele foi uma nova experiência para mim.

Divertia-me com seu rosto assustado quando dirigia em alta velocidade. Aquele homem grande com medo era muito engraçado. Contava piadas para se distrair, mas eu sabia que estava querendo sair pela janela. Era naturalmente atrapalhado, mas nos momentos íntimos se transformava, e me fazia sentir sem o chão sob os pés.

Enchia-me de carinho e seus olhos castanhos sempre me seguiam, aonde quer que eu fosse. Não era dado a aventuras, de uma certa forma era até preguiçoso. Preferia ficar encostado no sofá, lendo seu jornal. Não o culpava. Eu já era movimentada por nós dois. Mas gostava de me acompanhar em tudo o que fazia. Eu adorava sua presença, adorava suas piadas.

Às vezes tolerava coisas que eu mesma não toleraria. Minha comida era horrível, eu nunca prestei atenção nessas coisas de medidas, tempo de cozimento. Talvez por isso sempre comi fora de casa. Mesmo fazendo um esforço para engolir o que eu preparava, ele sempre sorria, e dizia que estava ótimo. Eram provas de amor. Pequenas provas de amor, mas que faziam a grande diferença na nossa relação.

Nós nos completávamos. Lembro-me da vez que fomos juntos ao supermercado. Ele comprava sempre ali, mas não conhecia ninguém. Eu estava ali pela segunda vez e praticamente já havia falado com todos. Perguntou-me como aquilo era possível. Respondi que era simples, era só sorrir e cumprimentar as pessoas, a conversa era uma extensão. Começou a aprender essas coisas comigo. Passou a ser mais alegre. Sempre me vesti com roupas para pessoas mais velhas, procurando aumentar minha idade. Mas ele gostava que eu mostrasse o corpo, e me elogiava sempre. Em casa me fazia surpresa com novos lingeries, sensuais. E sempre acertava o meu gosto. Diferente de mim, ele tinha um sono de pedra, e muitas vezes dormiu no meu ombro enquanto eu acariciava seus cabelos. Bruno era assim. Menino comigo, mas sempre tentando parecer sério.

Quando conseguia fazê-lo rir eram minhas ocasiões preferidas. Ele tinha uma gargalhada sonora, que contagiava. Se tinha defeitos, não conseguia vê-los. Mas suas virtudes eram visíveis. Considerava-me uma mulher de muita sorte por ter sido escolhida por ele. Nenhuma estória de fadas poderia se comparar ao tempo que estivemos juntos. Éramos felizes na nossa simplicidade. Talvez esse fosse o segredo. Simplicidade e amor.

Detalhes

Caminhava para casa com o passo apressado. Queria estar logo com Jessica. Nosso primeiro aniversário de casamento. Na minha pasta carregava um presente e na mão um ramalhete de flores.

Abri a porta em silêncio. Mas em vez de fazer surpresa, fui surpreendido com a sua ausência. Aquilo era estranho, pois sempre chegava em casa antes de mim, e mesmo que pretendesse sair, ela me esperava para o fazermos juntos.

Sentei na poltrona dela com minha maleta no colo e as flores na mão caída. Não imaginei onde ela poderia estar. Deixei minhas coisas em cima da mesa e fui até o quarto. Pequenas velas iluminavam o ambiente. Na cama um bilhete:
‘Tire a roupa, deite-se e aproveite o show’.

Eu sabia que aquilo era coisa de Jessica. Voltei até a sala, peguei o presente, as flores e fiz o que o bilhete mandava. Ela deveria estar me espionando, porque quando me encostei nos travesseiros, saiu do banheiro, enrolada em um robe de seda branco. Sem olhar para mim, ligou o som, e a música encheu o ambiente. Começou a dançar, fazendo caras e bocas para mim. De costas, abriu o roupão e o deixou escorregar até o chão. Estava usando um corpete branco, cinta ligas, meias de seda brancas. Apoiava-se sobre sapatos salto alto. Contorcia-se passando as mãos pelos cabelos, e seus olhos me perfuravam. Um a um os botões do corpete se abriram, e ele também escorregou para junto do robe no chão. Ela se ajoelhou na cama aos meus pés. Com jeito de felina roçava seus seios nas minhas pernas, enquanto engatinhava na minha direção. Quando alcançou meu rosto, me beijou de leve na boca, mordeu minha orelha.

- Eu amo você Bruno, este é o meu presente por este ano de felicidade que você me deu, disse sussurrando no meu ouvido.
- Quem me dá a felicidade é você meu amor, disse beijando ela com paixão.

Abri a caixa que estava no criado mudo. Coloquei os brincos de ouro em suas orelhas. Ela parecia embriagada. Mas não estava. Era somente desejo. O mesmo desejo que eu sentia mesmo estando longe durante o dia.

Fizemos amor até que as velas se apagassem, escurecendo o quarto, e somente o brilho dos olhos de Jessica me iluminava com seu azul profundo.

Ela deitou-se relaxada ao meu lado. Segurando minha mão disse:

- Você promete que nunca deixaremos de pensar nos detalhes? Que nossa vida nunca caíra na rotina?
- Meu amor, se você disser que vai me amar, vivendo em uma casa de árvore, se alimentando somente do que a natureza nos der, nos mudamos amanhã para a Amazônia. Se você quiser morar em uma caverna, eu irei com você. Eu não posso deixar de amar você, e os detalhes entre nós dois nunca deixaram de existir.
- Promete? Perguntou virando o rosto para me olhar nos olhos.
- Eu juro! Nossos dias vão ser repletos de pequenos detalhes, que farão nosso casamento diferente de todos os outros.

E cumpri minha promessa. Todos os nossos dias tiveram algo diferente do anterior. Talvez eu me prenda demais em descrever nosso relacionamento, mesmo o mais íntimo. Mas isto é a nossa história vista pelos olhos de um homem. Se Jessica pudesse escrever, talvez falasse de outras coisas. Infelizmente, ela não pode.

Detalhes por Jessica

Bruno foi o único homem que amei. Entreguei-me totalmente para ele. Amei-o com intensidade, em todos os momentos que ficamos juntos. Nunca foi egoísta. Nunca tivemos dinheiro de sobra. Eu continuava estudando por bolsa de estudos, e Bruno vivia de seu salário de professor. Mas nas pequenas coisas que me proporcionava, naqueles pequenos detalhes diários, conseguia que cada dia eu me sentisse mais ligada a ele. Seu modo de falar, didático às vezes, com ironia outras, divertida sempre, satisfaziam a minha necessidade de carinho e amor.

- Bruno, vamos dar uma volta? Um dia perguntei.
- Claro meu amor, respondeu, aonde você quer ir?
- Caminhar, vamos?

Ele me pegou pela mão, e saímos sem destino.

- Vamos chupar um sorvete? Perguntei.
- Claro Jessica, mas as quatro da manhã, onde vamos encontrar algum lugar aberto?

Bruno era assim. Eu era caprichosa e ele paciente. Nestas horas eu tinha certeza de seu amor. A palavra ‘não’ não fazia parte do vocabulário dele.

Queria me ver sempre alegre. E conseguia.

Quando terminei meu curso, não tínhamos dinheiro para pagar as despesas com a formatura. Eu não me importava com isso, já havia conseguido o mais importante que era o diploma, e dali para frente poderia ajudá-lo com a casa. Era só encontrar um emprego, mesmo que mal remunerado. Bruno não se conformou. Não só pagou a formatura, como no dia que me graduei me deu um lindo anel.

Eu estava radiante. Mas me preocupei. Se ele tivesse se endividado para pagar mais um capricho meu, nós iríamos viver a pão e água por muito tempo.

Não tinha dívidas. Descobri quando voltávamos para casa o que ele havia feito. Vendeu seu próprio carro para arcar com todas aquelas despesas.

- Por que Bruno? Eu poderia muito bem ter ficado sem participar, e você ainda teria o seu carro.
- Você esta feliz? Perguntou-me.
- Claro que estou, mas você se desfazer do seu carro me deixou triste.
- Esqueça isso, estava velho e você sabe que eu adoro andar com você, respondeu segurando com mais força o puxador da porta, enquanto eu dava uma guinada no volante, para cortar a frente de um taxista que cismava em andar feito uma tartaruga.

É possível deixar de amar um homem assim?

Quando ele chegava em casa, depois de passar oito horas trabalhando, não apresentava cansaço. Eu o revistava, porque eu sabia que sempre iria encontrar alguma coisa para mim. Às vezes era um bombom. Outras uma flor. Um prendedor de cabelo. O que mais gostei, não foram essas coisas, mas sim o que eu encontrei um dia, em que ele chegou com o rosto triste. Estava cansado, e seus movimentos eram lentos. Deixou a pasta em cima da mesa e sentou na poltrona, tentando sorrir para mim. Não perguntei nada, porque o conhecia, falaria quando estivesse pronto. Sentei-me em seu colo, e como todas as noites revirei seus bolsos. Não encontrei nada, somente um cartão, com meu nome escrito no envelope.
Quando abri li o seguinte:

“Amor, hoje faltou o dinheiro, mas não o amor. Deveria haver uma rosa junto com este cartão. Fico devendo a flor, mas não o sentimento. Amo você, Bruno”.

Aquilo me fez chorar. Eram os detalhes que faziam que eu o amasse tanto. Detalhes que tínhamos um com o outro. Tanto grandes como pequenos, eram pequenas amostras da paixão que nos envolvia.

Separação

Quando julho chegou, com seus dias frios e cinzentos, Jessica preferiu ficar em casa a viajar. Estava um pouco diferente, mas eu atribuía a mudança ao clima. Ficava lendo na sala e não sorria tanto quanto antigamente. Minhas tentativas para alegrá-la tinham sido infrutíferas.

- O que você tem meu amor, disse abraçando-a, é alguma coisa que eu fiz?
- Claro que não, você é maravilhoso. É apenas cansaço.
- Você nunca se cansou, você esta doente?

Sabia que eu estava preocupado. Mas relutava em me contar o motivo que a deixava naquele estado. À noite, acordei, e não a encontrei na cama. Estava na sala, no escuro, chorando baixinho. Quando acendi a luz, tentou esconder as lágrimas.

- Você deveria estar dormindo, disse esfregando os olhos.
- Você também, respondi. Preciso saber, o que esta acontecendo?

Sentei me ao seu lado. Encostou a cabeça no meu peito, e começou a soluçar. Esperei que se controlasse. Estávamos os dois sofrendo.

- Eu vou deixar você, disse por fim.
- Por que?! O que eu fiz?
- Você não fez nada, disse se levantando e buscando um livro. De dentro tirou um envelope pardo. Quem fez fui eu.

Li atentamente cada palavra. Quando terminei, minha vista se escureceu.

- Não existe cura? Falei sussurrando.
- Não meu amor, no estágio que esta, não existe tratamento.
- Mas não pode ser assim definitivo, deve haver uma saída.
- Eu procurei uma segunda opinião, mas outro médico confirmou o diagnóstico. O tumor na minha cabeça não tem cura, e nem é possível extirpá-lo.

Não podia me conformar.

- Vou vender tudo, e vamos para os Estados Unidos. Lá existem clínicas que podem curá-la.
- Você quer acreditar nisso, eu também. Mas sabemos que vai ser em vão.

Eu sabia. Mas não podia aceitar aquilo tão facilmente.

- E que mais o médico falou, quais são as alternativas?
- Não existe alternativa, apenas tomar remédios para diminuir a dor e esperar.
- Esperar? Pelo que?

Ela não respondeu. Não precisava. Não queríamos falar a palavra, mas iríamos esperar pela morte. Pela única coisa que poderia nos separar.

E um dia ela chegou.

Jessica não saía mais do quarto. Tinha dores de cabeça que pioravam dia a dia. Aprendi a aplicar-lhe injeções de morfina, que a tiravam da realidade, mas que afastavam a dor. Eu estava de licença da universidade, e passava todos os minutos com ela. Nos poucos momentos que tinha de lucidez, ela procurava me animar, sorrindo e dizendo que eu parecia estar doente. Ela estava certa. Estava doente de amor por ela.

- Você já comeu hoje? Perguntou com a voz enfraquecida.
- Já.
- O que você comeu?
- Não sei, não me lembro.
- Bruno, eu preciso de você. Preciso que seja forte. Estou tentando ser forte para que você não sofra tanto. Vai, pede um cachorro quente para nós, diga para o seu Manoel que o meu eu quero com tudo.
- Você não pode comer essas coisas, disse tentando segurar as lágrimas.
- Vai me fazer mal? Perguntou tentando sorrir.

Tinha razão.

Aproveitar todos os momentos...

Levantei-me, mas ela me segurou pela mão.

- Alcance-me aquele bloco de papel e a caneta, disse.
- Para que?
- Vou escrever um livro, respondeu fazendo cara de dor, mas tentando disfarçar com seu sorriso lindo.

Coloquei o bloco no seu colo. Não gritei da janela como Jessica fazia.

Sentei-me ao lado de seu Manoel e chorei.

- Ela esta mal? Perguntou preocupado.
- Ela esta se apagando, disse. Minha estrela esta se apagando.

Aquele homem devia ter sofrido muitas coisas na vida. Sua própria vida deveria ser sacrificada. Mas duas lágrimas rolaram de seus olhos e ele colocou o braço no meu ombro dizendo:

- “Nossa” estrela esta se apagando.

Ficamos por um momento procurando respostas para o que estava acontecendo. Não existiam. Pedi que fizesse o sanduíche de Jessica. Ele fez dois.

- Você precisa comer também, esta muito magro e abatido. Por favor, não deixe de me contar o que se passa com ela.

Não aceitou que eu pagasse. Apenas me empurrou dizendo:

- Fica com ela. Ela precisa de você.

A casa estava silenciosa. Quando abri a porta do quarto, Jessica me olhava, com o azul de seus olhos. Não mudou a expressão quando me sentei ao seu lado, tentando animá-la, contando que nosso jantar tinha sido grátis, e que seu Manoel mandava lembranças.

Sua mão estava em cima do bloco, com a caneta entre os dedos. Segurei-a, mas ela não se mexeu. Estava fria. Apenas seus olhos continuavam a brilhar. Procurei por minha Jessica naqueles lagos azuis, mas não encontrei. Ela tinha partido.

Passei a mão pelo seu rosto, e fechei seus olhos me despedindo deles para sempre.

Na folha de papel, com letra tremida, estava escrito.

“Bruno”,

Não existem despedidas para nós. O caminho que vou percorrer, vou fazer sozinha agora, mas, nunca se esqueça: Amo você. Lembre de mim com alegria. Onde eu estiver, terei sempre o seu sorriso me acompanhando,

Jéssica “.

Não sabia ao certo aonde ir. Naquela hora da noite, as ruas estavam desertas. Precisava encontrar algum lugar para comprar cigarros. Não estava em condições de dirigir, ainda tinha muito álcool na minha cabeça. Havia um posto de gasolina em algum lugar por ali, não deveria ser difícil de achá-lo.

Pelas calçadas desertas, não era apenas a minha sombra me acompanhava. Não sei se era o efeito da bebida, ou mais uma das minhas alucinações, mas parecia que ela pulava a minha frente, brincando de amarelinha nos desenhos do concreto do piso. Era o que Jessica fazia algumas vezes.

Lembranças. Dias e noites felizes.

- Você pode tê-los de volta se quiser.
- De que maneira, perguntei.
- Esqueça-me, procure outra mulher que o faça feliz. Alguém que você também fará feliz. Você é um homem maravilhoso. Se saísse dessa concha que o esta prendendo, prestaria atenção nas pessoas a sua volta.
- O que você faria se fosse eu que tivesse partido? Também estaria com outro homem? Aceitaria o mesmo conselho?

Eu já sabia que só receberia o silêncio como resposta. Enganei-me.

- Talvez eu estivesse pior que você, mas não sei. Não teria outra pessoa comigo. O que tive com você, nenhum outro homem poderia me dar.
- Então por que fala isso para mim?
- Por que eu amo você e gostaria que você fosse feliz.
- Esqueça. Minha felicidade se foi com você. Todos os meus sonhos também. O que ficou, e o que espero é somente o nada.

Até o nada seria muito. Quem viveu o que eu vivi, quem foi feliz como eu fui, não se contenta com migalhas. Qualquer coisa diferente do que um dia eu já tinha possuído, seria apenas uma esmola dada pelo destino.

- Você sempre culpa o destino, mas eu acho que na verdade me culpa, e apesar de pensar que me ama, na verdade você me odeia por tudo o que aconteceu.
- Odiar você?
- É a maneira que eu estou enxergando as coisas. Você se castiga, sofre assim, porque sabe que eu sofro muito mais com a sua infelicidade. Quando mais infeliz você fica, mais e mais triste eu fico.
- Então volta para mim, supliquei.
- Não posso... Gostaria de poder voltar e viver cada minuto com você, mas não é possível e você sabe disso.
- E o que sobra então? É isto que se tornou minha vida? Somente viver com a sua lembrança?
- Meu amor me esqueça. Lembrar o que passou só o tornará mais amargo. Deixe a vida seguir o seu curso. Seja ele ruim ou bom. Falei uma coisa para você e acho que não prestou atenção. A vida é feita de pequenos prazeres. Você tem que aproveitá-los.
- Não consigo...
- Procure a força que você sempre teve dentro de você. Você vai conseguir. Eu vou dar o primeiro passo para que você tenha sucesso. Vou embora. Ficar aqui não vai fazer você ficar melhor. Nós dois sabemos disso.
- Não!
- Sim meu amor. É melhor. Nós ficaremos juntos no momento certo. No lugar certo. Adeus Bruno, amo você.
- Por favor, não vá!

Como resposta, tive somente o eco das minhas palavras. Chamei, gritei, implorei. Nada somente o vazio. Olhei para o chão, e minha sombra estava lá estática. Não pulava mais os ladrilhos da calçada. O perfume de Jessica se fora. 

Olhei para o alto, procurando por algum sinal.

- Deus! Pensei, me leve com ela. Não me deixe aqui sozinho.

Mas o céu não respondeu.